sábado, 13 de março de 2010

Resenha: ABREU, Martha. GOMES, Ângelo de Castro. A nova “Velha” República: um pouco de história e historiografia in: Tempo Nº 26 Vol. 13 - Jan. 2009


Ermano Oliveira
Jonatas Cruz
Pedro Dantas
Tásso Araújo


A História é construída através de ressignificações do passado, estas novas significações são releituras do passado e não existe leitura ingênua. Martha Abreu e Ângela de Castro Gomes sabem que este tipo de pensamento pode jogar luz nas dinâmicas das produções historiográficas. O período em questão é formado pelos primeiros momentos republicanos no Brasil, República Velha.
As autoras começam a pensar o próprio termo República Velha como uma construção histórica e ideológica. Aquilo que aprendemos na escola, enquanto estudantes secundaristas, esteve maculado por esta imagem da República Velha como um período obscuro, caótico, enfim carente de manifestações e ideias que identificassem o Brasil unificado política e culturalmente. E como estas invenções de termos servem a algum projeto, ou alguma prática, o termo República Velha corresponde a anseios de projetos[i] ou do projeto do Estado Novo. Uma leitura mais aguçada do texto leva a crer que o termo foi construído na vontade e/ou necessidade de criar uma identidade ou negar uma identidade vinculativa com o período anterior. Então, para as autoras, a construção da ordem do discurso do Estado Novo é indissociável da negação do período nomeado de República Velha. Portanto, nomear o passado é um ato de força que os historiadores gozam.
Não sem intencionalidade esta visão nos foi legada pelos ideólogos do Estado Novo que, como o nome mesmo já revela, relega o período imediatamente anterior projetando transformações que se iniciam com a chegada desta nova situação política, uma ruptura com o fracasso da Primeira República. A partir de então, constroi-se a imagem do novo período atacando características essenciais do anterior, como o liberalismo e o federalismo, que com a descentralização inicialmente visavam uma maior aproximação da população com o governo através dos seus desdobramentos locais; mas estes aspectos enfraqueceram o poder central e abriram espaço para os desmandos dos coroneis locais[ii]. O próprio termo “Velha” em si carrega certo tom pejorativo. Ao encarar o desencadear dos fatos, os intelectuais do Estado Novo, passaram a ter uma atitude, nas próprias palavras das autoras: Teleológica, para com o Estado Novo.
Os críticos da República Velha a acusavam de ser contemplativa e imitadora do modo de vida europeu, marginalizando a cultura popular, tipicamente brasileira. O trabalho dos novos ideólogos surgiu como uma crítica aos valores do período anterior, um esforço de construção de uma identidade que ressaltasse características presentes na realidade do país. A força desta visão negativa da Primeira República marcou a historiografia nacional, o Estado Novo seria um grande espaço para a mediação cultural de manifestações populares. Aos olhos das autoras essa conjuntura de interpretações históricas, com certo tom de maniqueísmo político, é fruto do processo de criação e afirmação discursiva do Estado Novo.
As autoras alertam que estas críticas de forma intencional marginalizaram as lutas e conquistas da República Velha, entre elas, a realização sistemática de eleição como uma situação de pedagogia política das populações. Apesar de no texto trazer a informação, as autoras, não percebem festividade como espaço da cultura política, tal qual, Raimundo Arrais[iii] percebera ao analisar as camadas baixas da sociedade durante o Salvacionismo.
Além das críticas de fundo político e social, as historiadoras chamam especial atenção para os ataques de ordem cultural à Primeira República. Segundo elas, os ideólogos do Estado “Novo” acusam e apontam a incapacidade da República “Velha” de instituir um forte ideal republicano e, menos ainda, um ideal de nação “brasileira”. Os críticos da Primeira República a acusam de ter negado e perseguido os gêneros populares e nacionais de manifestações culturais, para valorizar uma cultura “importada”, eurocêntrica e afastada das tradições populares. Ou seja, a República “Velha” não teria se aproximado do Brasil ‘real’. Porém os ideólogos do Estado Novo encaravam o povo como um consumidor que não teria capacidade de reagir diante do poder.
O povo e seus movimentos não podem ser vistos como passivos e determinados pelo governo vigente, estamos de total concordância com as autoras. Mesmo, não citados pelas autoras, a historiografia têm produzido estudo no qual a influência de pensadores como Michel de Certeau[iv], tal como a tese de doutoramento de Sylvia Couceiro[v] no qual é visível o esforço de buscar a reação da camada popular às camadas mais altas da sociedade.
Em oposição direta a Primeira República estaria o Estado “Novo”, pintado por seus ideólogos como o “construtor de uma nação ‘real’, em termos de cultura e história nacionais” (p.10). Esse Estado passaria a apoiar as ‘verdadeiras’ manifestações brasileiras: o samba, o carnaval, a cultura afrodescendente, etc., construindo uma identidade “mestiça” do Brasil.
A questão para as autoras não é negar que durante a Primeira República houve perseguições e repressão a manifestações culturais populares. Mas sim, de relativizar o papel do Estado “Novo” como o grande patrono e incentivador da cultura popular, atribuindo aos próprios agentes populares a iniciativa de luta pelo reconhecimento, mesmo antes de 1930.
O texto de Ângela de Castro Gomes e Martha Abreu não é uma simples apologia da Primeira República, elas reconhecem os problemas e as limitações do período, inclusive os avanços do Estado “Novo”. A questão, porém, é a de não reproduzir o estigma estrategicamente criado, abrindo possibilidades para múltiplas interpretações. Esse objetivo fica claro em algumas expressões utilizadas: “e esse pior existe, mas não é tudo que existe” (p.8); “Mas isso não foi tudo” (p.10); “Definitivamente, ela não era só isso” (p.13).
No campo estritamente político as autoras enxergam a historiografia recente como reveladoras, que as eleições se fizeram importantes, pois havia “uma relativa, mas estratégica, circulação das elites, introduzindo na cena política um mínimo de competição e renovação[vi]” Quanto à competição, não resta dúvida, já que a manipulação do povo denuncia esta prática; mas dado que os cargos eletivos eram ocupados pelas elites e que os próprios partidos formados para a disputa dos pleitos eram compostos por essas mesmas elites, cabe discutir se tal renovação não era apenas uma alternância de poder.
A historiografia recente tenta desmontar as versões e ressignificar a República Velha, tentando fugir das armadilhas engendradas no pensamento historiográfico pelos ideólogos do Estado Novo, por isso há uma indicação no sentido de melhor estudar este período, abordando novos problemas, fazendo-lhe novas perguntas, percorrendo novamente os caminhos do tempo na renovação da historiografia desta época.
[i] Projeto aqui entendido na perspectiva de Castoriadis, onde a Práxis e o projeto são simultâneos. Para mais detalhes ler: CASTORIADIS, Cornelius. A Instituição Imaginária da Sociedade. Paz e Terra, São Paulo 2000.
[ii] Cf. CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 41.
[iii] ARRAIS, Raimundo. Recife, culturas e confrontos. Natal: EDUFRN, 1998
[iv] Para mais detalhes ler: CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: as artes de fazer. Vozes, Rio de Janeiro , 2009.
[v] COUCEIRO, Sylvia Costa. A arte de viver a cidade. Recife, Tese (Programa de Pós-Graduação em História) - UFPE, 2003.
[vi] Grifo nosso

3 comentários:

  1. Parabéns ao grupo pela resenha. Gostei da forma como foi escrita.

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  2. Foi proveitoso trazer a discussão acerca do termo e da República Velha em si. Este tipo de debate onde busca-se a substituição de terminologias usadas com um certo preconceito é algo que deve ser estendido a outros termos que utilizamos tão comumente, mas que carregam um teor de preconceito, a exemplo da terminologia "Pré-História".

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  3. Pois é, Renan. Essa é uma atitude crítica, e acredito que devemos cultivá-la como uma postura teórico-metodológica. Mas eu acho que o debate não pode se restringir a substituir as terminologias, mas entender porque e como foram criadas - descontruindo-as - e então se pensar um novo termo. Vamos fazer isso durante todo o curso!

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