sábado, 20 de março de 2010

Resenha da Introdução e do Capítulo I de CARVALHO, José Murilo. Os Bestializados. O Rio de Janeiro e a República que não foi.

CARVALHO, José Murilo. Os Bestializados. O Rio de Janeiro e a República que não foi. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.


Edson de Araújo Nunes

Nieliton de Souza Almeida

Rafaella Valença de Andrade Galvão

Renan Vilas Boas de Melo Magalhães


A transição do regime monárquico para o sistema republicano constitui, indubitavelmente, campo de diversas discussões e acepções historiográficas. Dada a complexidade inerente a este processo, variados enfoques buscaram compreendê-lo a partir de sua dimensão social, política, econômica, ou ainda, cultural. Boris Fausto dirigiu quatro volumes (8 a 11, respectivamente) intitulados O Brasil Republicano[i] da famosa coleção História Geral da Civilização Brasileira, onde colaboradores com distintas formações acadêmicas irão analisar aspectos também distintos deste período da nossa História. Em História da Vida Privada no Brasil[ii], coordenado por Fernando Novais, a história sociocultural do Brasil Republicano é tema presente nos volumes 3 e 4. Para Emilia Viotti da Costa, em sua Da Monarquia à República[iii] as transformações econômicas e sociais que culminaram no estabelecimento da República no Brasil decorrem da junção de três forças, quais sejam, parcela significativa do Exército, integrantes das camadas médias urbanas e fazendeiros do oeste paulista.

No tocante a estudos específicos sobre a chamada República Velha ou Primeira República, há ainda muito o que ser explorado. Preencher parte substancial desta lacuna é tarefa empreendida por José Murilo de Carvalho, pós doutor em História da América Latina pela Universidade de Londres (1977) e atualmente professor titular aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi (1987), obra interdisciplinar, onde buscou compreender a problemática da construção do Estado e da Nação, bem como a natureza da cidadania gerada nos primeiros episódios da experiência republicana no Brasil.

A obra é dividida em cinco capítulos, onde o autor dialoga com fontes de natureza primária (em especial, jornais da época) e secundária; destaca-se o uso de fontes literárias contemporâneas ao processo em tela, figurando escritores como Raul Pompéia, Aluísio de Azevedo, Lima Barreto, dentre outros.

Na introdução da obra, José Murilo de Carvalho justifica sumariamente o seu estudo enquanto tentativa de compreensão de um problema de natureza política referente à participação das camadas populares na vida política da República. Sua amostra espacial foca nada menos que a maior cidade do país – em termos demográficos e econômicos – e capital política e administrativa do Estado Brasileiro: o Rio de Janeiro.

Para além de um viés maniqueísta onde o Estado tão somente obstaculariza a Sociedade, sendo mesmo um vilão ante os cidadãos, partindo do pressuposto de que existe algo além de um povo bestializado, o autor tenta entender “que povo era este, qual seu imaginário político e qual a sua prática política”[iv].

No capítulo I intitulado “O Rio de Janeiro e a República”, Carvalho analisa as transformações sociais, econômicas, políticas e culturais ocorridas nas primeiras décadas da Primeira República, expondo que as transformações sucedidas na capital foram antecipadas a partir da transição da Monarquia para a República.

Um dos aspectos elencado pelo Professor José Murilo é de natureza demográfica. Aqui, aponta o crescimento populacional na cidade do Rio de Janeiro como resultante de fatores como: o aumento do número de imigrantes e do êxodo rural, este último em decorrência direta da abolição. O autor consubstancia suas afirmações arrolando tabelas estatísticas e censitárias.

Ainda nesta esfera, o autor nos traz uma visão panorâmica das dificuldades enfrentadas por esta população em vertiginoso crescimento. Aqui se somaram problemas que iam desde a má remuneração até a insalubridade das habitações, que acometiam trabalhadores domésticos, jornaleiros, entre outros. Também como conseqüência do aumento populacional, o Rio de Janeiro será campo fértil para a atuação de ladrões, prostitutas, malandros, trapeiros, bicheiros, jogadores, pivetes, e os conhecidos capoeiras.

Do ponto de vista econômico, o autor destaca questões como a febre especulativa em torno da moeda, ante a concessão do novo regime para a emissão de dinheiro por parte de vários bancos – onde o lema era o enriquecimento a todo custo; destaca, também, o enorme aumento no custo de vida e a defasagem do aumento salarial.

Quanto a campo político, José Murilo de Carvalho nos expõe que a “Proclamação da República trouxe grandes expectativas de renovação política, de maior participação no poder por parte não só de contra-elites, mas também das camadas antes excluídas do jogo político”[v]. Arena de decisões da condução da nação, o Rio de Janeiro torna-se foco e condutor das atenções de todo um país, o que trouxe toda uma esfera de frenesi para a população da capital.

Outro ponto desta abordagem é o papel dos militares, que se julgavam donos do poder e no direito de intervir a qualquer momento na questão política. Os militares contrastavam com os esboços de partidos que surgiam das classes mais baixas e de intelectuais com a motivação de democratizar a república.

Prosseguindo sua argumentação, o autor registra o movimento ocorrido no plano das estruturas mentais e ideológicas da República. Vertentes positivistas, liberais, socialistas e anarquistas, no decorrer das primeiras décadas posteriores ao 15 de novembro, irão gerar o amálgama político-ideológico deste cenário.

No decorrer do capítulo, José Murilo de Carvalho pondera o papel de intelectuais frente às alternativas de disposição política da Nação; quebras no campo da moral e dos costumes, tão bem representados pelos romances da época, como também pela revista O Tribofe[vi] de Artur Azevedo e seus caricatos personagens; a antipatia do setor pobre, especialmente da população negra, ao regime republicano; a perseguição republicana aos capoeiras, aos bicheiros, etc.

Um dos principais desafios da República seria neutralizar a influência de uma capital tão famigerada – nos termos do quadro exposto pelo autor – para o restante da nação. A solução é encontrada a partir da redução da participação popular aliada à eliminação dos setores militarizados do governo. Indiretamente, buscou-se também o fortalecimento dos estados a partir da pacificação e cooptação de suas oligarquias. Nas palavras de José Murilo de Carvalho, eis a solução: “governar o país por cima do tumulto das multidões agitadas da capital”[vii]. Quanto ao governo municipal, sua ação administrativa foi extremamente limitada pelo governo federal, dissociando-o da participação dos cidadãos. “A expectativa inicial despertada pela República, de maior participação, foi sendo assim sistematicamente frustrada”[viii].

As barganhas pessoais fecham o círculo da corrupção política da Primeira República, onde os “fazedores de eleições, os promotores de manifestações”[ix], eram nada mais que os proprietários de casas de jogos e de prostituição. “A ordem aliava-se a desordem, com a exclusão dos cidadãos que ficava sem espaço político. O marginal virava cidadão e o cidadão era marginalizado”[x].

No que se refere ao tipo de participação popular que havia na capital republicana, o autor aponta para práticas situadas à margem da política oficial, vivenciadas nas festas populares, nas comunidades habitacionais, fossem estas étnicas ou locais. E, mais tardiamente, a partir das associações operárias anarquistas.

Por fim, o autor discorre sobre a urbanização e o saneamento da cidade, que excluía a população pobre, expulsa de suas habitações – especialmente, aquelas oriundas dos cortiços – para assim adentrar no mais entusiástico espírito da belle époque.

Com uma escrita clara e elegante, Os Bestializados, para além de um público restrito ao âmbito acadêmico, torna-se obra substancial para todos aqueles que têm interesse em analisar a longa caminhada da cidadania brasileira, ao analisar como os grupos populares lutaram e foram incapazes de vencer uma elite política minoritária – em termos numéricos. Tais elites mostraram força e articulação para criar dispositivos que vampirizam e impedem, desde longa data, a efetiva e consciente participação política da maioria dos cidadãos brasileiros.

Como afiança o próprio autor, ainda que seu estudo se trate de uma investigação histórica, este não está desvinculado do presente; posto que no atual cenário político, por vezes, os representantes do poder público nos são apresentados em suas práticas corruptas e ilícitas, através dos variados meios de comunicação, a temática da cidadania nos é extremamente contemporânea. Qual o papel do cidadão frente a tantos escândalos no Congresso, no Senado, ou ainda no próprio Palácio da Alvorada? Quem sabe, o olhar crítico para o passado nos traga reflexões e posições pertinentes para o nosso presente político.

É atual o estudo de José Murilo de Carvalho por elencar questões sociais no alvorecer da República; questões também prementes no Brasil Contemporâneo, que comporta várias problemáticas ainda não solucionadas neste campo, desde a desigualdade na distribuição de renda, no acesso a uma educação de qualidade e aos serviços de saúde pública.



[i] FAUSTO, Boris (Dir.). O Brasil Republicano. 4.ed. -. São Paulo: DIFEL, várias datas. 4v. (8-11) (História geral da civilização brasileira)

[ii] NOVAIS, Fernando A (Coord.). História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. vol. 3 e 4.

[iii] COSTA, Emilia Viotti da. Da Monarquia à Republica: momentos decisivos . 3. ed. -. São Paulo: Brasiliense, 1985.

[iv] CARVALHO, José Murilo. Os Bestializados. O Rio de Janeiro e a República que não foi. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 13.

[v] Ibid., p. 22.

[vi] Apud CARVALHO, José Murilo. Os Bestializados. O Rio de Janeiro e a República que não foi. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

[vii] CARVALHO, José Murilo. Os Bestializados. O Rio de Janeiro e a República que não foi. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 33.

[viii] Ibid., p. 37.

[ix] Ibid., p. 38.

[x] Ibid., p. 38.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.