sábado, 20 de março de 2010

Resenha dos capítulos 2 e 3 de CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados.

Resenha dos capítulos 2 e 3 de CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados. O Rio de Janeiro e a República que não foi. 3 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

John Keven
José Claudomiro
Luciano Leão
Raissa Paz

“Bestializados”, nome do livro em estudo de José Murilo de Carvalho, referência a frase de Aristides Lobo (jornalista republicano e abolicionista) sobre o povo brasileiro em relação à proclamação da Repúblicai, é uma tentativa de releitura das relações que construíram o que conveio a chamar de Primeira Republica brasileira, dando ênfase aos que foram rotulados de “bestializados”.
O capítulo intitulado de REPÚBLICA E CIDADANIAS fala entre o fim do Império e o início da República como um período de uma convulsão de ideias importadas da Europa, as quais se misturavam ao sabor das novas demandas e das conveniências brasileiras. O Rio de Janeiro, em particular, vivenciava uma febre de valores burgueses que chamou atenção de monarquistas e republicanos pelo predomínio de assuntos financeiros, inclusive na política. Essas mudanças referem-se à mentalidade coletiva. Pois, contudo, no campo político e social as diretrizes que eram liberais vinham desde o período imperial, assim como os direitos civis que quase ficaram inalterados pela constituição de 1891.
As mudanças eleitorais encetadas pelos republicanos tinham inspiração nas eleições diretas de 1881, que reduziu a participação do eleitorado para um décimo, excluindo do processo eleitoral os analfabetos. José Murilo de Carvalho entende que essa restrição à participação de uma parcela do eleitorado, se deveu a uma clara distinção entre sociedade civil e sociedade política. Para reforçar esse argumento, o autor recorre a Pimenta Bueno que em sua análise sobre a constituição de 1824 fizera distinção entre cidadãos detentores de direitos civis e, outros, de direitos civis e políticos. A concepção do direito político é dada por merecimento aos cidadãos denominados ativos (já que o voto é tido como uma função social e um dever) e aqueles que seus direitos não atingem a esfera política, são taxados de inativos.
A proibição do voto dos analfabetos mostra uma clara contradição e uma discriminação mascarada para com essa parcela da população brasileira, visto que, o Estado não criara as condições necessárias para dar instrução primária. Assim também, a constituição de 1890 cria dispositivos de repressão ao operariado e desobrigação de socorros públicos, mostrando claramente o projeto de exclusão e manutenção da classe dominante no poder através de um liberalismo pragmático. A República, chegara, pois, para substituir o Império que em algumas questões atrapalhava o liberalismo.
No contexto da disseminação dos ideais republicanos destaca-se Silva Jardim, um dos principais ideólogos do republicanismo no Brasil, que defendia uma concepção de cidadania em que os interesses gerais estariam acima dos particulares e, portanto, ditariam os rumos e necessidades coletivas. Para tanto, defendia uma ditadura republicana, sem, contudo, deixar claro o papel do povo nesse novo cenário.
Entretanto, o modelo federalista adotado na constituição de 1891 possibilita o fortalecimento de oligarquias locais, deixando na centralidade das discussões os interesses particulares. Dessa forma, a questão da ampliação da cidadania política e questões sociais assumiram papel secundário, num modelo liberal conservador.ii
No mais, outro setor importante para propaganda republicana foram os militares, que partindo de um sentimento de insatisfação quanto às limitações de seus direitos de cidadania que se tornara mais acirrado nos dez anos que antecederam 1889, reivindicavam um papel de cidadão ativo, ou seja, o soldado-cidadão. Havia dessa forma, uma identificação do exército com o povo.
Em decorrência desta identificação surgiu uma aproximação com a classe do operariado estatal, que na busca de uma maior participação política chegou a discutir uma legislação trabalhista avançada para a época e com a criação do partido operário pressionaram a criação de um código penal que permitisse greves e associações.
No entanto, vale salientar que os militares e o operariado estatal assumiram o papel de seus movimentos de dentro do Estado, não sendo movimentos essencialmente vindos das camadas populares. A esse tipo de obtenção de cidadania, Carvalho a denomina Estadania, ou seja, a utilização do Estado com propósitos específicos.
Entre as correntes ideológicas da época, o positivismo destaca-se por um paternalismo estatal que, segundo o autor, a cidadania política seria uma dádiva do estado não advindo de conquistas ou reivindicações. É o modelo de um estado autoritário. Mas, conforme ressalta BASBAUM, as influências do positivismo não vão muito além do que se verifica na propaganda republicana, ou seja, a disseminação do ideário republicano e seus teóricos no Brasil pouco influenciaram como positivistas.iii
Por outro viés, a corrente socialista entendia que no modelo republicano o estado deveria garantir uma maior participação dos cidadãos na vida pública através de organizações representativas. A resistência do Estado republicano em ampliar a cidadania, contudo, fez surgir um sentimento de descrença que propiciou o crescimento do anarquismo junto à classe operária, destacando-se duas correntes: os anarquistas socialistas e os anarquistas individuais. Distinguiam-se principalmente pelo fato de que os primeiros, a maioria, admitiam “o sindicalismo como arma de luta”iv , enquanto que os últimos, os mais radicais, não aceitavam qualquer tipo de hierarquia que não fosse aceita. Mas, ambas convergiam no sentido da luta contra as restrições de cidadania encetadas pelo regime republicano.
Contudo, faz-se notório pela compreensão da relação historiográfica do pensamento de Murilo de Carvalho com os outros autores citados na bibliografia, o real impasse que a instituição do sistema republicano gerou. Por um lado, verifica-se a implantação da “democracia”, como modo de uma estratégia política para consolidação do poder por parte das elites. Todavia, por outro é constatado o impedimento desta forma de governo às classes menos favorecidas e até mesmo ao exército, não deixando impressionar a insatisfação causada nesta parcela da população, onde a revolução agora era seu principal lema.
Tendo como referência a historiografia contemporânea à Primeira República, Murilo de Carvalho no terceiro capítulo (CIDADÃO INATIVOS: A ABSTENÇÃO ELEITORAL) retoma (aprofundando) a ideia de “cidadãos inativos” e/ou inexistência de um “povo brasileiro” da qual estava sendo rotulado a maioria da população e que continua perdurando em muitos discursos atuais. Para isso, o autor tenta desconstruir esse posicionamento (político) através do questionamento: que tipo de cidadão os intelectuais (estrangeiros ou não) que problematizavam a situação brasileira de início da República buscavam?
Partindo das informações de representantes intelectuais estrangeiros o autor percebe um tipo de conceitualização comparativa. Cidadão e atividade cidadã pertenciam aos padrões europeus. Nessa linha é que o francês biólogo Louis Couty é apresentado tendo interpretações preconceituosas (inclusive raciais) achando, por exemplo, “o escravo de fazenda inferior ao irlandês, ao russo, ao operário alemão ou francês, como fator de revolução ou de progresso social”v. Entretanto, os intelectuais brasileiros, independentemente de suas buscas por uma identidade nacional ou um governo próprio e autêntico, se remetiam também a modelos e ideais europeias para projetarem o Brasil.
Povo como “massa de manobra”. Momentos vários da história (ex. Revolução Francesa, Revolução comunista, ...) essa característica (muito cômoda, por sinal) simplifica as interpretações. Mas, seria muito ingênuo acreditar que algumas “boas almas” da elite se tocaram com a causa dos menos favorecidos em alguns (muitos) âmbitos sociais e foram reivindicar e oferecer direitos à população. É fazendo um estudo da lógica de não participação direta do povo na política que Murilo de Carvalho explora o exemplo da Revolta da Armada, momento considerado de agitação popular. Percebe, então, que para tentar não se contradizer, aqueles mesmos historiadores que pensam o povo inativo vêm explicar, nesse caso, que os que participam das manifestações são a “escória”, a “escuma social”vi. Ou seja, descartando a seriedade dos participantes e, consequentemente, dos movimentos de rebelião.
Utilizando-se estatísticas de 1890 e 1906 é levantado dados que exprimem (ou deveriam exprimir) a organização ocupacional da população ativa do Rio de Janeiro (cidade explorada no texto, já que era a capital e tida como exemplo da situação total do país – se bem que sabemos a precipitação dessa associação). Resulta a maioria ser composta pelo proletariado (incluindo, aqui, jornaleiros, encarregados de serviços domésticos, profissão desconhecida e/ou não declarada)vii. Dos dados de 1890 só cerca de 1% pertenciam à classe alta. As duas classes intermediárias com praticamente as mesmas proporções eram compostas por profissionais liberais, funcionários públicos, comércio, manufatura, transporte, entre outros.
Entre as pessoas que adicionavam o número dos proletariados fluminenses estavam em torno de 50%. De acordo com os dados do censo de 1890, 30% da população urbana do Rio de janeiro era composta por indivíduos de outra nacionalidade. Contudo, em classes mais altas da sociedade via-se a atuação dos estrangeiros, principalmente portugueses. Os lusitanos estiveram extremamente presentes na classe proprietária. Para isso o autor recorre às informações de Assis Brasil (que atesta os domínios que os portugueses tinham na cidade do Rio de Janeiro), como também as de Raul Pompéia, sendo este ferrenho crítico da presença portuguesa na capital da nova nação republicana.
Levanta-se, portanto, no texto mais umas questão: Quem seria então o “povo político” da Primeira Republica? Por que ele votava? E por que grande maioria (segundo as estatísticas) mesmo com direito ao voto não o fazia?
Levando em conta as várias categorias que são excluídas oficialmente de votar (mulheres, menores de 21 anos, estrangeiros, outros) o número de votantes se reduz drasticamente. (Observamos que o autor aqui não problematiza a questão racial e/ou de etnicidade. Releva a questão dos estrangeiros mas não se refere aos negros e sua integração na cidadania.) Contudo, dos que possuíam o direito ao voto pouca parte é que exercia. Os motivos seriam vários. As denominações que se faz da Primeira Republica de oligárquica, de voto de cabresto, da Espada, entre outras, não está distante de muitas relações que se estabeleceram. Houve a “capangagem”. Muitas pessoas preferiam estar longe das eleições e das confusões. Diz, então, Murilo de Carvalho que o Brasil não tinha povo se povo é aquela maioria da população que vota com autonomia. Mas existia aquele que “quando participava politicamente, o fazia fora dos canais oficiais”viii.


[i] CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados. O Rio de Janeiro e a República que não foi. 3 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2005
[ii] RESENDE, Maria Efigênia Lage. O processo político na Primeira República e o liberalismo oligárquico. In FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucília de Almeida Neves (orgs.). O tempo do liberalismo excludente: da Proclamação da República à Revolução de 1930. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 98.
[iii] BASBAUM, Leôncio. História sincera da República. Das origens a 1889. Vol. 1. 5 Ed. São Paulo: Alfa ômega, 1986, p. 204-205.
[iv] CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados. O Rio de Janeiro e a República que não foi. 3 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 57.
[ v] COUTY, Louis. O Brasil em 1884: esboços sociológicos. Brasília; FCRB/Senado Federal, 1984. p.35, citação no artigo RIBEIRO, L. C. Andre Rebouças e Louis Couty: idéias para o século vinte, encontrado na página da web http://www.angelfire.com/planet/anpuhes/ensaio21.htm#_ftn1.
[vi] Grifo do autor. CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados. O Rio de Janeiro e a República que não foi. 3 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 72.
[vii] Tabela II. Ibid., p. 72.
[viii] Ibid., pp.90

2 comentários:

  1. estou com problemas técnicos para postar. Não sei o porque da fonte pequena e diferente entre os parágrafos. Estamos tentando solucionar.

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