sexta-feira, 21 de maio de 2010

"A historiografia da classe operária no Brasil" e "Formação da classe operária e projetos de identidade coletiva"

Resenha dos artigos "A historiografia da classe operária no Brasil: Trajetória e tendências" e "Formação da classe operária e projetos de identidade coletiva", ambos de autoria de Cláudio H. M. Batalha (Unicamp)

Raíssa Paz
Pedro Dantas
Luciano Ribeiro
John Keevin

Em seu artigo “A historiografia da classe operária no Brasil: Trajetórias e tendências” (BATALHA in: FREITAS, 2000) o historiador Cláudio H. M. Batalha, da Unicamp, toma como objetivo analisar a produção escrita sobre esta temática partindo de momentos anteriores a uma produção realizada por acadêmicos profissionais até a situação atual. Sua análise é muito rica e merece discussão aprofundada, propiciando inclusive um debate sobre a produção do próprio autor. Cabem antes de continuar, entretanto, algumas ressalvas, apontadas pelo próprio Batalha no começo de seu texto e que perpassam não só este material como também o outro artigo que será resenhado, intitulado “Formação da classe operária e projetos de identidade coletiva” (BATALHA in: FERREIRA; DELGADO, 2003).

Em primeiro lugar, nota-se na escrita do autor uma preocupação em não analisar as produções historiográficas isolando-as umas das outras, mas compreendendo-as dentro de contextos mais amplos. As transformações políticas, sociais e econômicas que ocorrem no Brasil e no mundo durante o século XX estão intimamente relacionadas às “tendências interpretativas” daquilo é produzida sobre determinado tema ou período. Ao mesmo tempo, Batalha não rejeita a importância das significativas mudanças de paradigma teórico-metodológicos ocorridas nas academias pelo mundo durante o mesmo período, e tampouco a influência que estas tiveram sobre os intelectuais brasileiros. É por meio deste movimento duplo de influências, presente em todo o texto, que o autor elabora sua análise.

Outra questão de extrema importância que achamos importante destacar é a distinção que o autor faz entre o que seria a história dos movimentos operários e a história da classe operária propriamente dita, estando esta confusão intimamente relacionada à apropriação que foi feita da temática por parte da esquerda brasileira (seguindo uma tendência mundial, vale ressaltar). Esta relação possui vital importância para a discussão do autor e para a compreensão do desenvolvimento da escrita sobre o assunto no Brasil, desde os seus primórdios.

É justamente por está via que surgem os primeiros trabalhos sobre a classe operária no Brasil até os anos 50, produzidos principalmente fora da academia e seguindo abertamente a lógica da guerra de opinião. Era comum no período a generalização das lutas e conquistas dos movimentos operários e do Partido Comunista como sendo aquelas de todos os trabalhadores, independente de qualquer heterogeneidade de opiniões que estes viessem a possuir. Esta tendência, que o autor chama de “militante”, possuiria principalmente uma função de legitimação, seja das políticas e opiniões do próprio partido, ou mesmo de indivíduos ligados a esquerda. Em obras como A formação do PCB (PEREIRA, 1962) já se via a idéia, recorrente no período, de que fora apenas a partir da fundação do Partido Comunista em 1922 que se poderia falar de história dos trabalhadores. Este recorte, que toma como centro de gravitação as décadas de 20 e 30, exercerá grande influência até os anos 80.

A partir dos anos 60, contudo, é que trabalhos acadêmicos propriamente ditos passam a ser produzidos lidando com a temática da classe operária. É sob a égide destas obras que, de acordo com Batalha, se cristalizam diversas noções sobre o tema, como a origem estrangeira da mão de obra e a importância desta na introdução das idéias anarquistas e socialistas entre o operariado brasileiro durante a Primeira República.

Deste período, destacam-se o trabalho de sociólogos como Juarez Brandão Lopes e Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, que ambicionavam em seus trabalhos elaborar grandes sínteses explicativas para a situação do Brasil e do operariado brasileiro. Uma característica marcante aqui era o uso ainda tímido das fontes, principalmente no que diz respeito à diversidade destas. Esta limitação, entretanto, não impede estes pensadores de elaborar grandes teorias para explicar a situação dos trabalhadores da época em comparação àquilo que era visto em outros países.

Já nos anos 70, sob a repressão da ditadura militar, as maiores contribuições para o tema provêm dos brasilianistas (ainda que estes não focalizassem seus esforços especificamente na história do trabalho, como é o caso de Michael Hall), cuja influência se mostraria bastante duradoura. Rejeitando os grandes esquemas propostos pelos sociólogos paulistas, os pesquisadores estrangeiros buscam diversificar as fontes utilizadas e reduzir as escala de suas pesquisas, tanto temporal como espacialmente. A revisão crítica da idéia dos imigrantes como uma coletividade que desembarcava no Brasil já na condição de operariado experiente, devidamente armado ideologicamente para um novo tipo de confronto de classe, foi de fundamental importância posterior ao demonstrar que ainda restavam muitas questões abertas, aguardando apenas um olhar mais elaborado.

As críticas feitas pelos brasilianistas aos trabalhos anteriores realizados no Brasil, notadamente a falta de rigorosidade e diversidade na utilização das fontes, terá dentro da academia brasileira um efeito provocador, impulsionando novas pesquisas mais situadas na realidade acadêmica da época ao encorajar o uso de procedimentos que apesar de serem considerados “de praxe”, vinham sendo pouco seguidos pelos historiadores e sociólogos brasileiros.

Neste mesmo momento ocorre uma sensível diminuição da repressão dos militares dentro das universidades, e Batalha associa a crescente produção de dissertações sobre a temática a esta sucessão de eventos político-sociais. É nesse contexto de efervescência, no nível acadêmico sob a influência dos brasilianistas, e no nível político-social com o aumento da liberdade para a crítica contra o regime (que possibilitará a abertura do arquivo Edgar Leuenroth na Unicamp, por exemplo), que Batalha insere o trabalho de Boris Fausto (FAUSTO, 1976), assim como as dissertações de SILVA (1977), MAGNANI (1978) e FERREIRA (1978).

Observa-se então que o final dos anos 1970 havia presenciado um aumento considerável no interesse pela história do trabalho e dos trabalhadores, sendo, entretanto apenas com a chegada da década de 1980 que esta temática alcançará seu apogeu, tanto em termos de produção como de recepção do público leitor.

O contexto é de contestação do regime militar, com a greve dos metalúrgicos da ABC sugerindo a necessidade de se compreender melhor o passado da classe trabalhadora em uma tentativa de se encontrar explicações mais condizentes com a realidade vivida no período. Além deste importante momento de lenta redemocratização na história do Brasil, no mundo acadêmico a historiografia marxista inglesa produzia trabalhos de fôlego notável do ponto de vista teórico-metodológico, expandindo ainda mais as possibilidades proporcionadas pelas fontes. É deste período A formação da classe operária inglesa de Edward Thomson (THOMSON, 1987), que pode ser citado como um trabalho cuja influência ainda está por se dissipar, mais de 20 anos após sua publicação. Também em outros países a história da classe operária se expandia, abarcando novas temáticas e enfoques. No Brasil a própria cronologia sobre o tema, antes restrita ao século XX, é empurrada até 1880, propiciando novas reflexões críticas em torno de conceitos tidos quase como dogmas. Erguendo-se sobre uma nova forma de se pensar os processos históricos, o estudo da classe operária passa a se desprender progressivamente da tremenda força gravitacional exercida pela história dos movimentos e partidos operários, que dominavam até então a historiografia sobre o tema.

Ao longo dos anos 1980, então, a produção sobre o tema floresce de forma rápida. Seus frutos, entretanto, passam a cair cada vez mais longe da árvore que os originou. A fragmentação do campo de estudos produz trabalhos que se detêm em espaços cada vez menores, tanto cronologicamente como espacialmente. A própria dinâmica da academia no Brasil, com suas novas exigências metodológicas, contribuía decisivamente para esta situação. A temática da história dos trabalhadores, antes bem definida como tal, passa a se confundir com estudos sobre urbanismo, cidadania e política, por exemplo.

Buscando além do contexto da própria academia, Batalha observa ser o final dos anos 80 um momento de profunda crise da esquerda, momento onde praticamente se extingue o socialismo real como ideologia de peso no cenário geopolítico internacional. A relação dos pensadores de esquerda com os estudos sobre o operariado é evidente para o autor, como já mencionamos no começo, e a desilusão dos destes possui relação direta com a diminuição (mas não desmantelamento, ressalta Batalha) dos trabalhos sobre a temática.

Dos anos 90 até o presente essa “crise” não parece ainda ter sido superada. Até mesmo as suas raízes ainda não foram devidamente identificadas, sendo mencionada a idéia de Emilia Viotti da Costa (COSTA, 1990), para quem os motivos que levaram aos impasses atuais se devem a um embate entre duas vertentes, uma de cunho estruturalista e outra culturalista.

Em meio a esta situação, entretanto, continuam surgindo novas perspectivas para os estudos sobre a classe trabalhadora, esboçadas desde os anos 80, mas ainda não devidamente exploradas. A crescente diversificação das fontes utilizadas, por exemplo, ainda não alcançou seu potencial pleno, ao mesmo tempo em que novas leituras tanto das antigas fontes tradicionais como das mais recentes sob a luz de reflexões mais atuais à respeito do fazer historiográfico se fazem necessárias, e abrem um grande horizonte para os interessados no tema.

O outro artigo de Batalha que nos propomos a discutir neste espaço, intitulado “Formação da classe operária e projetos de identidade coletiva” (BATALHA in FERREIRA; DELGADO, 2003), se insere neste horizonte de possibilidades, apesar de possuir ambições que certamente não se refletem em outros trabalhos mais específicos do autor. A própria ausência de uma exposição de objetivos no início do artigo atesta para o seu caráter de discussão introdutória. Se “A historiografia da classe operária” (BATALHA in FREITAS, 2000) busca apresentar os caminhos percorridos pela escrita sobre esta temática ao longo da segunda metade do século XX, nesta “Formação da classe operária” Batalha expõe diversos problemas e temáticas de grande interesse para o historiador contemporâneo, preservando o caráter de debate historiográfico do primeiro artigo em boa parte do texto ao mesmo tempo em que lida diretamente com a temática em si, ainda que dentro de em um grande recorte espaço-temporal, característico de manuais de história como este “O Brasil Republicano” (FERREIRA; DELGADO, 2003) onde o artigo se insere.

Dito isso, o texto de Batalha possui grandes qualidades. O misto de revisionismo historiográfico e personalismo mostra-se eficaz para o tipo de introdução pretendida. As idéias apresentadas no longo debate descrito pelo autor no artigo que viemos de discutir são testadas diante das perspectivas do próprio Batalha, ativo ainda hoje como pesquisador da temática. Ele se sente confortável, por exemplo, em rejeitar o automatismo que associa o surto de industrialização dos anos 1880 com o surgimento da classe operária, considerando que a formação da idéia de classe se manifesta através de concepções, ações e instituições que são percebidos em longos períodos.

Um dos argumentos mais fortes utilizados pelo autor em defesa desta idéia é justamente o tamanho das mobilizações que ocorrem ao longo das duas primeiras décadas do século XX. Estes movimentos, por envolverem muito mais pessoas do que o número restrito de trabalhadores, testemunham a favor de algum tipo de experiência coletiva que surgia então. Se uma das grandes críticas feitas pela historiografia recente aos trabalhos anteriores era que estes misturavam de forma insensível a história do movimento operário com a história da classe trabalhadora como um todo, momentos como este são particularmente significativos. Afinal, sabe-se hoje que durante muito tempo os movimentos sindicais em si foram dominados por uma minoria de trabalhadores qualificados. Se, ainda assim, grandes massas de pessoas se mobilizam por identificação com as causas e reivindicações do que consideravam ser seu grupo comum, justamente a classe trabalhadora, isto é um indício da existência desta classe como uma realidade histórica que é a parteira de seus próprios significados. Isto significa rejeitar totalmente seu surgimento e organização como resultado mecânico, mero axioma do desenvolvimento da indústria e do fim da escravidão, mas sim como um processo de construção de uma identidade coletiva marcada por constantes resignificações do que significa ser parte de uma coletividade, para além dos rótulos deterministas que são impingidos posteriormente a indivíduos que durante tempo demais tiveram negado o direito à autoria de sua própria história.

Outro aspecto muito interessante da análise empreendida por Batalha é sua tentativa constante de se equilibrar entre radicalismos, talvez aquilo que Emília Viotti da Costa (COSTA, 1990) teria descrito como vertentes “estruturalistas” e “culturalistas”. Um dos momentos em que isto fica evidente é no debate sobre a influência dos imigrantes na elaboração dos movimentos operários, tanto em termos de participação efetiva como de inspiração ideológica. Enquanto uma corrente anterior, herdada dos sociólogos dos anos 60 baseados na USP, tendia a atribuir grande papel aos europeus que aqui aportavam na gênese destas organizações coletivas, convencionou-se nas décadas seguintes, dentro da historiografia, a adoção de uma postura critica diante destas afirmações, onde se procurou ressaltar a origem rural do imigrante, sua inexperiência política e suas próprias divisões internas como fatores que mais teriam dificultado que ajudado na formação dos movimentos sociais pelos trabalhadores. Batalha, por sua vez, não abraça nenhuma das explicações, afirmando antes ser importante a rejeição de qualquer análise fundada em determinações estruturais. Trata-se de uma bela provocação, que parece evocar a necessidade de esforços micro-históricos como uma forma mais capaz de compreender a complexidade das relações envolvidas entre brasileiros e os estrangeiros que aqui chegavam.

Na metade do texto, entretanto, Batalha parece abandonar progressivamente o que consideramos os aspectos mais interessantes de sua análise. Se por um lado é um grande trunfo deste momento de sua exposição mostrar as diversas divisões existentes dentro dos movimentos operários, quando diversas correntes se digladiavam pela voz mais forte dentro das associações e partidos, a proposta inicial de discutir a classe operária como algo que se manifestaria para muito além dos círculos dos movimentos vai sendo deixada de lado na medida em que o texto avança. Pouco é dito sobre o quotidiano do operariado, por exemplo, e as fontes trabalhadas são todas relacionadas a jornais e decretos dos próprios movimentos.

Não se discute a riqueza deste material, mas sim a abordagem empreendida. A recepção que os trabalhadores não-participantes dos movimentos faziam destes textos não nos parece óbvia, e deveria ser objetivo de mais investigações se a instigante idéia inicial de alcançar além daquilo que se manifestava de forma mais polêmica dentro da sociedade fosse seguida até suas últimas conseqüências.

Semelhante problema surgiria se se tentasse fazer uma história dos estudantes da UFPE com base nos jornais e decretos produzidos pelos diversos movimentos estudantis existentes dentro da universidade. A relação que se estabelece entre os estudantes e este material poderia render ricas discussões sem dúvida, mas deve-se admitir que a forma como este conteúdo é recepcionado pelos discentes está longe de ser algo dado, automático. Seguindo este raciocínio, pensamos que não foi saciado nosso interesse em compreender melhor a sociedade dos trabalhadores para além dos movimentos, pelo menos não neste trabalho específico de Batalha.

Com relação ao primeiro artigo, podemos fazer algumas reflexões que dizem respeito ao tratamento dado pelo autor as diversas correntes ou “tendências” da produção escrita sobre o tema ao longo do século XX. A maior riqueza do panorama desenhado por Batalha encontra-se justamente na sua capacidade didática, um esforço pragmático muito capaz sem dúvida, sendo de fato uma bela introdução ao tema. Por outro lado, vemos na discussão elaborada por Batalha a respeito do estudo da classe operária uma tentativa enriquecedora e muito válida de rejeitar estruturalismos e associações fáceis entre as conjunturas políticas, sociais e econômicas e os próprios trabalhadores. O estudo da participação dos imigrantes, para citar um exemplo já discutido nesta resenha, mostra como as exceções enriquecem os debates e podem lançar nova luz em explicações antes totalizantes.

Sendo assim, não fica claro para nós os motivos pelos quais essa generosidade não é estendida à própria produção historiográfica. Batalha enquadra os trabalhos escritos sobre o tema em categorias um tanto arbitrárias, e toma pouco cuidado ao associar os intelectuais e suas influências aos contextos de época em suas formas mais generalizantes, como a ditadura, as greves do fim dos anos 70, a redemocratização, a queda do comunismo, as influências acadêmicas vindas de fora, entre outros.

Da mesma forma que a redução da classe trabalhadora como um todo em movimento operário é uma ação que para nós (e para Batalha) parece pouco produtiva, a associação imediata de contextos tão gerais às idéias produzidas por indivíduos que neles se encontravam inseridos nos pareceu uma solução um tanto determinista, possivelmente necessária se levarmos em consideração o curto espaço e os amplos objetivos do texto.

Para concluir, percebemos em ambos os artigos um sabor inegável de manual, ainda mais que ambos se assemelham em suas grandes ambições espaciais e cronológicas. Entretanto, graças ao talento de Batalha e sua evidente paixão pelo tema, chega o leitor ao final da leitura com a sensação que apesar do grande caminho percorrido por esta historiografia tão particular ao longo do século XX, ainda resta muito material para ser explorado e, sobretudo, muitas vozes aguardando para serem ouvidas.

Bibliografia:

BATALHA, Cláudio. A historiografia da classe operária no Brasil: Trajetórias e tendências in FREITAS, Marcos Cezar. Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo : Contexto, 2000.

BATALHA, Cláudio. Formação da classe operária e projetos de identidade coletiva in FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucilia de Almeida Alves. O tempo do liberalismo excludente: da Proclamação da República à Revolução de 1930. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2003.

Um comentário:

  1. Retificando, meu segundo prenome é Keven,houve um errinho de digitação!!!hehe

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